sexta-feira

1º Dia

9 / Setembro / 2005
A viagem começou mesmo antes de ter começado. E não é sempre assim? A curiosidade espevita o desejo e os sonhos moldam-se entre o tempo disponível. Perdida algures num calendário vivido, a vontade de ir fez escolher o destino: Marrocos. E fomos.
As formalidades e as burocracias necessárias para quem viaja para fora da União Europeia roubaram algumas horas de sono. Um carimbo da Embaixada de Marrocos absorveu a primeira manhã da viagem. Saída de Lisboa: 12.00H. Mesmo embalados pela descoberta, foi com alguma dificuldade que vencemos a languidez e a sonolência que se observa em qualquer corpo que depois de alimentado receba o aconchego do sol… Ficámos a saber que existem no Alentejo duas localidades com o nome de “Pisões”, pelo que uma consulta mais desatenta do mapa nos fez gastar uns quantos quilómetros. A noite foi caindo entre consultas ao guia dos parques de campismo em Espanha. A intenção de chegar a Tarifa no primeiro dia foi sendo posta de parte há medida que começava a faltar a luz do sol e a abundar o cansaço. Conil de la Frontera, Camping Roche. E o joão-pestana abriu devagarinho o fecho da tenda e enroscou-se entre os sacos-cama.

sábado

2º Dia




10 / Setembro / 2005
Ferros arrumados, banho tomado e estômago reconfortado. Prontos para continuar. Tarifa surgiu, sem demora, com o mar ao fundo e com uma panóplia imensa de ofertas de tudo e mais alguma coisa que se relacione com o surf.
A compra dos bilhetes do barco foi confusa e rápida, numa comunicação feita de espanhol, espanhol falado por dois portugueses que não sabem falar espanhol, inglês e inglês falado por espanhóis…, facto explicado pela inércia inerente ao início da estruturação do pensamento numa língua que não a habitual. Um nervoso miúdo, miudinho colava-se à ânsia de partir. Corriam pelas nossas cabeças interrogações invisíveis de como iria ser. E estava quase a ser! O tempo tomou formas redondas e quando embarcámos eram 13.00h em Espanha e 11.00h em Marrocos. Depois do carimbo no passaporte restava-nos apreciar o trajecto. A miscelânea de pessoas tornava o ambiente discrepante. As peles escuras contrastavam com os cabelos muitos louros e as peles muito brancas das hospedeiras de bordo. Feições diversas amontoavam malas e bagagens transportadas de muitas partes do mundo. O destino comum rimava com a troca de olhares e de sorrisos.
Alcançamos Tanger em alguns minutos. E a aventura começou… O porto de Tanger é a mais perfeita definição de entropia. Aprendemos poucos minutos depois da chegada que, por razão alguma, devemos deixar os passaportes nas mãos de alguém que não aparente ser polícia. Pelo que viemos a perceber mais tarde precisamos de obter uma autorização para podermos conduzir uma viatura automóvel em Marrocos. Ao fim de quase uma hora de explicações em todas as línguas que conseguimos articular e entre os muitos pedidos de euros obtivemos a tal “folha verde”.
E agora…? Estava para breve o espectáculo da anarquia da condução nas estradas de Marrocos. Atravessar uma estrada pode ser considerada uma autêntica proeza já que nenhum condutor pára nas passadeiras. As buzinas constantes dos “petit táxi” que serpenteiam pelo emaranhado de carros, carroças e pessoas misturam-se com fragmentos de conversas em árabe. Com o mar ao lado, as avenidas largas, algo ocidentalizadas, explodem de cor para o interior da cidade velha e de recantos por descobrir com a novidade a desenhar-se em cada sombra. Atrapalham-nos as constantes abordagens das crianças na ânsia de alcançar uma moeda com a venda de um qualquer bem, embaça-nos a fome nos olhos que saboreiam ao longe um qualquer resto deixado por quem se sente já saciado… sentimo-nos os menos pobres no meio de quem tudo precisa e a excitação da descoberta esbate-se um pouco com a urgência de poder ajudar.
Perdemo-nos alegremente no labirinto de ruelas que formam a parte antiga da cidade, a medina. Esbarramos com um universo de cores e de cheiros e surpreendemo-nos com o facto de tudo poder ser motivo de negócio, até pintainhos multicores! O brilho dos bules, a beleza das construções, a mescla de cores, a limonada vendida ao copo, o cheiro do pão… Começamos a perceber que o preço fixo é um conceito que não faz parte de nenhum cérebro marroquino e que o gene do “saber regatear” não existe no nosso património genético. A arte de saber fazer negócio com um sorriso começa cedo entre os marroquinos… dois miúdos perseguem-nos alegremente tentando vender um tambor e umas pulseiras. A cantilena entoada “ dois euró”, “dois euró”, “muito obrigado”, “2 euró” repetida à exaustão leva-nos a comprar algo de que não precisamos. Mas o seu contentamento e os sorrisos sabem-nos bem.
O jantar é degustado no “le Saveur”, na presença de portugueses residentes temporariamente na cidade, o meu primo e uns colegas que foram destacados para trabalhar em Marrocos por algumas semanas. Bem regado com um saboroso sumo de figo, uvas e mel, a ementa é exclusivamente formada por pratos de peixe de óptima qualidade e de um picante digno de qualquer homem de barba rija!
A agitação nocturna de Tanger é notável… Sinto-me alvo de muitos e muitos olhares. Não sei a que se devem, tornam-se desconfortáveis. Rejeito atribui-los a uma beleza natural. Há marroquinas muito bonitas em Tanger! Talvez os cabelos compridos e destapados? As roupas ocidentais ainda que pouco curtas e provocantes? Ficarei na dúvida, olhada com atenção pelo povo marroquino, até ao final da viagem…

domingo

3º Dia

11 / Setembro / 2005
Acomodados numa artéria movimentada da cidade a noite não foi tão repousante como desejaríamos... Os condutores marroquinos desconhecem a proibição de buzinar durante a noite.
Acordamos cedo e saímos ávidos de quilómetros. Na rua passa um vendedor de peixe perseguido por gatos vadios e bonitos. Há muitos gatos em Marrocos. Seguimos em direcção a Chefchaouen por estradas encurvadas e estreitas entre montanhas e vales numa paisagem comparável à paisagem portuguesa (antes dos incêndios se terem tornado rotina). Muitos burros começaram a surgir numa moldura feita de amarelo ocre e verde e agradavelmente notamos a presença de crianças que brincam pelas beiras das estradas, sozinhas ou servindo de companhia de brincadeira para outras, desconhecendo riscos, perigos e medos. Um aceno nosso basta para muitos sorrisos delas. Carroças e crianças de lenços nas cabeças, sujas de lama e de felicidade esboçam em nós um retrocesso de alguns largos anos, ao tempo dos nossos avós, esse que temos semeado na memória pelas muitas histórias que nos foram contando.
Encaixada entre colinas surge Chefchaouen, casas brancas, telhados feitos em linhas horizontais, terraços no lugar da telha. A matrícula estrangeira do automóvel capta atenções e somos abordados prontamente por um habitante que se oferece para nos mostrar a cidade, a quem teremos de pagar 100 dirhams em troca de tão pronta hospitalidade. As ruas feitas de azul e branco (para afugentar os mosquitos e o calor), são estreitas e bonitas. Os corantes vendidos a granel confundem-se na balbúrdia colorida de cada recanto e as praças aglomeram a harmonia e exibem as suas gentes. Vozes de crianças no azul das brincadeiras. O cheiro do pão numa padaria diferente. Iniciamos aqui a nossa incursão no mundo dos tapetes marroquinos… a primeira apresentação de tapetes que se veio a repetir por várias vezes acontece sempre nos mesmos moldes, com arte de um marketing apreendido pela necessidade de vender ao turista. O chá de menta para saborear enquanto se negoceiam preços e gostos, a facilidade de pagamento, o envio para uma qualquer morada se o turista não se quiser incomodar com o peso e o volume do dito… Compra efectuada ficamos sem saber, mesmo depois de ter visto e negociado outros tapetes, se fizemos ou não um bom negócio. Será este um dos mistérios de Marrocos…
Deixamos para trás o simpático casario e embrenhamo-nos numa estrada secundária. A paisagem vai-se modificando. As montanhas tornam-se mais escarpadas, as curvas mais apertadas e a velocidade de andamento mais lenta. Na beira da estrada estranhamos ver tantos acenos e assobios que nos incitam a parar… achamos no início que se tratará apenas da tão popular simpatia do povo marroquino, mas quando nos vemos perseguidos por vários carros que quase nos obrigam a parar percebemos que não deverá ser apenas hospitalidade mas uma persistente tentativa de venda de produtos estupefacientes que crescem abundantemente por estas bandas. Após uns extensos cinquenta quilómetros de acenos negativos e de alguma apreensão conseguimos dissuadir os vendedores…
Até alcançar Ketama, a capital do narcotráfico, as localidades pareciam saídas de um qualquer cenário de guerra… as casas semi-destruidas (ou será semi-construidas?), as estradas de terra, o vaguear vazio e triste de pessoas que surgem do nada a quilómetros de distância de qualquer aglomerado de casas… Com o avançar dos quilómetros a paisagem começa a alterar-se, as povoações aparentam um maior bem-estar, as casas parecem mais confortáveis e sólidas e as pessoas parecem agora felizes contemplando o pôr-do-sol como se de uma terapia se tratasse… A chegada a Fez acontece já noite cerrada e a possibilidade de falar em inglês com os empregados do hotel sabe-nos bem. Encontramos o Hotel Perla e repousamos por lá. Apesar das 3 estrelas deduzimos que o conceito de limpeza difere muito de Portugal para o Reino de Marrocos…

segunda-feira

4º Dia




12 / Setembro / 2005
As coincidências acontecem. E às vezes trazem sorrisos. O António, um amigo espanhol, por acaso estava de férias em Marrocos, por acaso chegou a Fez na mesma noite que nós e por acaso ficou hospedado num hotel perto do nosso… em menos de nada um telefonema junta-nos alegremente para descobrirmos, ao acaso, a vida daquela cidade. O António chegou acompanhado do Yossef, um miúdo de 14 anos que falava fluentemente espanhol, inglês, francês, árabe, italiano e japonês e que nos guiou pela cidade.
Fez é a cidade com a maior panóplia de cheiros onde já estive. Cheiros bons e muito maus. A medina é labiríntica e francamente interessante; as ruelas muito estreitas, os véus que escondem as mulheres, o pão que se vende num carrinho ambulante, os muitos burros que transportam toda a espécie de carga, o barulho ritmado dos artesãos que trabalham o bronze, o tingir das peles, o cheiro nauseabundo das fábricas de curtumes, as especiarias e os perfumes que se espalham no ar, as relíquias arquitectónicas que se escondem entre casas em aparentes ruínas, os tapetes que temos forçosamente que ver e rever, a tentativa de aprender algumas palavras em árabe com o Yossef, a comida num restaurante simpático, a conversa com um amigo de quem se tem saudades, as crianças sozinhas nas ruas, a cerâmica pintada feita arte, o trabalho minucioso de talhar azulejo, as boas fotografias que saltam ao olhar… e saborear cada instante amontoando o sentir. Na hora da partida o carro precisa de ajuda… ficou sem bateria!
Saímos na direcção do deserto. Yossef tem um tio que é guia no deserto e entusiasma-nos dizendo que o deserto é o que de mais bonito existe em Marrocos. Idriss Alaoui, o tio de Yossef, telefona-nos em seguida. Recomenda-nos um hotel onde ficar e combinamos um novo telefonema para o dia seguinte. A paisagem é deslumbrante! O sol adormece e ao nosso lado estende-se uma ampla superfície ária, de uma bonita tonalidade ocre por debaixo do Médio Atlas. Percorremos vários quilómetros numa estrada perfeitamente recta sem vislumbrarmos vivalma. Os animais pastam por entre cascalho aparentemente nu, sem qualquer vegetação. Brincamos alegremente com a suposição de alguma avaria automóvel e as suas consequências quais capuchinhos vermelhos que levam os doces à avozinha. As cores da terra marroquina impressionam pela sua beleza e variedade levando-nos num repente de uma terra de cor ocre para outra laranja ou mesmo arroxeada. E é também num repente que, no meio de uma extensão ária e desértica, nos deparamos com uma corrente de água que atravessa a estrada e pela qual temos de passar. Ainda quando perguntávamos o que seria tal fenómeno o carro começa a soluçar, dando mostras de querer parar ali mesmo, no meio do nada. O sintoma passou mas o nosso susto foi descomunal. O bonito e confortável hotel esperava por nós, o Kasba Asmaa em Midelt. E o sono veio.

terça-feira

5º Dia



13 / Setembro / 2005
A trovoada povoou a noite. A chuva acariciou a areia e saímos ansiosos em direcção a Erfoud. Encontramo-nos com Idriss, afinamos a melhor língua para comunicar e acertamos o preço para que este nos guie pelo deserto. Sugere-nos naturalmente que viajemos os três num carro de dois lugares. Questionamo-lo acerca das autoridades… ele sorri e responde que a polícia é ele. Sem saber ao que vamos aceitamos a proposta e encaixotamo-nos na viatura. O calor aperta e Idriss admite que o meu carro é um qualquer 4X4 sob a nossa apreensão ao vermos a pseudo-estrada de terra batida, areia, e perigos vários. Ele tranquiliza-nos contando que apenas uma vez lhe aconteceu ficar com o motor de um carro todo no chão, brincando com o nosso pânico. O caminho em direcção às dunas de Merzouga estende-se em vários quilómetros de pista. Não há estrada, há apenas o sentido de orientação de Idriss.
Atravessamos primeiro o deserto negro, uma extensão considerável de areia escura de origem vulcânica. Idriss mostra-nos a grande quantidade de fósseis que por aqui existem em camadas de mármore que habilidosamente servem de matéria-prima para um sem fim de aplicações, provando que o mar já esteve ali. O cheiro da rosa do deserto... O deserto nasce no nosso olhar. A cor alaranjada da areia fina surge a cada quilómetro e anestesiados de emoção deixamos vaguear o olhar em interjeições de espanto. O almoço é tomado no Albergue Tombuctu, já em pleno deserto. Baba, um dos empregados, brinda-nos com o que sabe dizer em português… “bacalau, sardinas assadas, atum, gajas boas, paletes de gajas, resmas”. Desconhece o significado das expressões e confessa-nos que quem o ensinou foram os mecânicos da piloto Elizabete Jacinto que, hospedada no albergue, treinava para o Dakar. Conversamos em todas as línguas que sabemos e não sabemos, aprendemos e ensinamos. Precisamos de comprar uns turbantes para enfrentar o vento do deserto e sob esse pretexto somos conduzidos a mais uma mostra de tapetes onde nos propõem a troca de medicamentos para a realização do negócio. Regada com muito chá de menta, uma hora de intensa negociação não conduziu a qualquer acordo e seguimos caminho.
O sol começa a esconder-se nas dunas e os camelos esperam-nos para 2 longas e dolorosas horas de viagem até um acampamento berbere em pleno deserto onde passaremos a noite. Estamos com sorte… não há vento! As gargalhadas sobrepõem-se às muitas dores que aquele meio de transporte provoca. A lua, um guia que conduz a pé os animais e que apenas nos dirige uns poucos “Ça va?” e alguns sorrisos, o recorte das dunas, a dificuldade em subir e descer algumas delas… e mortos de cansaço e excitação chegamos ao acampamento onde Mohammed nos espera. Mohammed sabe algumas palavras em espanhol, algumas palavras em francês e tem um grande sorriso. É assim que comunicamos. Fascina-nos com a sua habilidade para tocar tambor e presenteia-nos com um verdadeiro espectáculo de percussão. Perguntamos-lhe como aprendeu a tocar. Responde-nos que não sabe… responde que sempre tocou. Mohammed é deliciosamente simples. Conta-nos que trabalha ali, recebendo os turistas. Pergunta-nos quantos irmãos temos e admira-se com a resposta que damos. Um irmão? Como? Ele tem sete irmãos e não entende como se pode ter apenas um… A família dele vive na duna mais distante. Quando o questionamos acerca do tempo que demora a chegar lá mostra-se intrigado com a pergunta. Não sabe quanto tempo se demora… isso não é importante, quando quer ir, vai. A maior distância que Mohammed percorreu foi de 20 quilómetros até à vila mais próxima. Nada conhece além do deserto. Não tem qualquer noção de tempo. E sorri muito. Pergunto-lhe se há serpentes e escorpiões por ali… responde que sim, que ele já foi picado 3 vezes por escorpiões. Pergunto-lhe o que fazem as pessoas do deserto quando ficam doentes… responde-me que não fazem nada, que esperam que passe. Espanto-me e sorrio muito quando Mohammed nos mostra o que para ele parece mais importante. Num murmúrio sussurra: “Escutem, escutem o silêncio…”. O cansaço acumula-se. A tenda espera por nós. Pergunto onde Mohamemed vai dormir. Ele responde que ali mesmo. Adormecemos todos ao relento, numa cama improvisada, “o melhor sítio para ver as estrelas quando a lua desaparecer por detrás daquela duna” como nos segreda Mohammed.

quarta-feira

6º Dia



14 / Setembro / 2005
Mohammed acorda-nos de mansinho. O sol nasce também de mansinho. Apercebemo-me agora da imensidão e da beleza escondida pela noite. Fico sem palavras. As dunas estendem-se suavemente até onde o nosso olhar pode absorver. Saltitamos de duna em duna. Deslumbramo-nos em cada passo. O sorriso rasgado acompanha a tentativa de fotografar. Impressiona. Emociona. O deserto não cabe em nenhuma fotografia nem cabe em palavras, por mais extensas que possam ser. O deserto é simplesmente o sítio mais bonito onde já estive! Lembro-me muitas vezes de “O principezinho”. Brinco com as sombras. Escuto a beleza na simplicidade. Guardo. E escuto novamente o silêncio…

Mais duas horas de camelo… a imensidão das dunas e outras caravanas de camelos por companhia. O caminhar saltitante destes animais tornam as dores insuportáveis com o passar do tempo. Estupefacção… do nada corre uma criança que tenta vender uma boneca feita de trapos. Banho e pequeno-almoço tomado, seguimos com Idriss para a viagem de regresso. A visita a um oásis faz-nos distribuir canetas pelas muitas crianças que nos abordam…agradecem-nos muito, ficam contentes com o presente. Estamos de partida e parece que já tenho saudades… Idriss mostra-nos a música tradicional de Marrocos e nós mostramos-lhe o fado. O meu pequeno e frágil veículo volta a ter de se comportar como um jipe…
Seguimos na direcção de Ourzazate. Paramos numa pequena localidade para matar a fome. O empregado do restaurante fala-nos do futebol português, conta-nos que vive no Japão e oferece-se para nos mostrar a vila. Não há turistas. Ao saber que sou farmacêutica encaminha-nos para uma Farmácia Berbere onde somos recebidos carinhosamente pelo farmacêutico… Há lagartos, cobras e outros bichos por ali pendurados, há mil e um frascos e frasquinhos. O farmacêutico também cura com o saber da magia negra e as artes do vodú. De longas barbas brancas o farmacêutico mostra-nos ervas e cheiros, explica-nos para que serve cada uma das plantas que recolhe e possibilita-nos uma experiência hilariante! O passeio encaminha-nos para mais uma mostra de tapetes desta vez numa casa de uma família berbere que os produz. Somos bem recebidos e bem tratados mesmo quando não estamos interessados em fazer compras.
Os quilómetros que se seguem trazem uma tempestade de areia… a visibilidade é mínima! A areia levanta-se em fúria e parece querer varrer tudo quanto apanhe pela frente. O vento acalma e seguimos entre cidades que se misturam com a cor da terra. Recortamos instantes que ficarão. Alcançamos Skoura já de noite e ao procurarmos poiso somos perseguidos por uma motorizada. O seu condutor oferece-nos quarto, jantar e pequeno-almoço por um preço razoável, 250 dirhams. Na mesma casa encontramos duas austríacas e um casal de belgas que foram ali parar da mesma maneira que nós. Perguntam-nos em que língua queremos falar. Conversamos animadamente pela noite fora e em inglês. O chá de menta é servido com pompa e circunstancia. Mapas, guias de viagem e máquinas fotográficas enchem a mesa. Partilhamos aventuras e desejos enquanto se inicia um concerto de música tradicional interpretado pelos donos da casa e por amigos da terra. O cansaço impera e aquilo que pensávamos ser um programa de entretenimento "para turista ver" prova ser um alegre e habitual convívio entre marroquinos que se estende mesmo depois dos turistas adormecerem…

quinta-feira

7º Dia



15 /Setembro/ 2005
Marraquexe surge como próximo destino. Contornamos em curva e contra-curva o Alto Altas. A sinalização é original... As montanhas sucedem-se áridas e transbordantes de acenos de crianças. Há pedras de cores vivas que as crianças tentam vender na beira das estradas. Fazemos negócio baixando o preço de 250 para 100 Dirhams e quando pegamos na pedra ficamos sem perceber se a cor é verdadeira ou cor-de-corante-vermelho… As cores da terra sucedem-se alternando entre o arroxeado e o amarelo ocre. As cores das casas confundem-se e fundem-se na cor da terra.
A entrada em Marraquexe é uma enorme peripécia. A sinalização não abunda nas cidades marroquinas… e quando damos conta estamos completamente embrenhados na medina da cidade. As ruas vão-se tornando cada vez mais estreitas e mais abarrotadas de pessoas, carroças, burros, galinhas, bicicletas, motas e todo o género de obstáculo para contornar. Um habitante montado numa bicicleta e em busca de uma moeda pergunta-nos onde queremos ir… respondemos que não sabemos, que queremos só sair dali!! Pede para que o sigamos e escapamos assim da labiríntica arquitectura da medina. Vagueamos pela cidade depois de instalados no Hotel Foucauld. A praça Jemma El Fna extravasa de animação e inebria os sentidos. Um delicioso sumo de laranja custa apenas 3 dirhams (0,30 €). Cheira a cominhos e a carne a assar. Ao fundo o som dos encantadores de serpentes que correm atrás de nós para a fotografia da praxe. A kotoubia, uma bonita mesquita, compõe o cenário. A cidade é muito agradável. Na imensidade cultural, na ironicamente chamada “Fnac Berbere” por alguém… entramos numa lojinha com 4 ou 5 computadores e com ADSL! Consultamos o e-mail e pouco mais. O colorido lá de fora chama-nos… Perdemo-nos entre comerciantes, entre cores e cheiros, entre preços regateados com sorrisos, entre negócios que nunca chegarão a sê-los. Motas e bicicletas circulam apressadamente e proporcionam uma percepção única de movimento. Cruzamo-nos com contadores de histórias, com mulheres que lêem a sina e lançam cartas, com artistas que fazem tatuagens de hena, com a reza dos fiéis, com as laranjas empilhadas, com o movimento da música, com os jogos tradicionais, com os tapetes suspensos, com o tempo feito rugas, com os sabores das especiarias… apetece ficar ali, só a absorver aquelas gentes, só a observar a multidão.
A noite cai sobre a praça e sobre nós. A fadiga e o cansaço de mão dada connosco encaminham-nos lentamente para o quarto do hotel.

sexta-feira

8º Dia




16 / Setembro / 2005
A manhã nasce quente e abafada. A descoberta de Marraquexe segue com a visita aos Jardins de Menara, onde reza a história terá servido, em tempos, para o Sultão consumar os seus encontros amorosos com as suas concubinas para depois as atirar ao lago de 2,5 m de profundidade… Partimos com a sensação que deixamos muito por descobrir em Marraquexe. MAs o tempo urge e a distância do regresso empurra-nos para outras paragens. Deslizamos em direcção à costa. Essaouira desponta num cenário azul de mar. Sinais de passagem dos portugueses em tempos vitoriosos perpetuam a história num alegre colorido . O forte tem caracter português. Há muitos turistas e muitos hotéis de muitas estrelas. Entramos na única igreja católica do reino de Marrocos onde os sinos repicam ao Domingo e onde o padre nos dirige um cumprimento de boas-vindas. Os cavalos galopam alegremente na praia e ouvem-se tiros e explosões que não percebemos bem… É uma “fantasia”, algo típico em Marrocos para promoção do cavalo árabe. A estrada convida ao palmilhar. Tomamos o sentido de Casablanca e o deslumbramento aparece ao nosso lado… as mais belas praias por nós avistadas, enormes, desertas, perfeitas! O caminho até elas não existe. Alcança-las, só com um jipe ou com uns longos minutos a pé, minutos esses que nos faltam mas que nos fazem prometer que voltaremos ali depois. O mar prolonga-nos o espanto entrando pela terra dentro formando uma bonita lagoa repleta de flamingos. A noite desenha-se já entre as horas e é com alguma dificuldade que encontramos onde ficar. O Hotel Assif, em Safi, uma pequena vila. É tarde para jantar. Num pseudo-restaurante com a cozinha na rua somos servidos com simpatia e por um grande sorriso de um marroquino que faz se regala por poder falar connosco em inglês.

sábado

9º Dia


17 / Stembro / 2005


O colchão demasiado mole semeia em nós dores de costas que não deixam o corpo descansar como deveria. O dia vem e nós seguimos com a direcção do regresso. Engolem-se os primeiros travos de melancolia mas as circunstancias que surgem a cada curva nas estradas marroquinas fazem-nos sorrir! Agora é esta carrinha de transporte de mercadorias, de caixa fechada, que suporta uma carga singular… muitas pessoas, muitos objectos e outras tantas tralhas muito para além da lotação do veículo vão amontoadas lá dentro engenhosamente. Já por si o transporte de pessoas nestas condições nos faria observar este veículo, mas o mais peculiar é o rebanho de ovelhas que este transporta na parte superior, parte esta vedada por quatro tábuas.
Entramos em Casablanca, uma cidade grande, muito ocidentalizada onde tomamos um das refeições mais dispendiosas. Almoçamos no McDonalds e só depois de reflectir entendemos qual a razão para o parque de estacionamento estar repleto de automóveis de alta cilindrada e de pessoas bem vestidas e mais gordas… almoçar por 44 Dirhams (preço de um menu) em Marrocos não é um luxo para qualquer um.
Apressamo-nos para a visita da Mesquita Hassan II, a segunda maior mesquita do mundo depois da mesquita de Meca. Sumptuosa, imponente e muito bonita, com o mar ao lado, a mesquita apresenta um minarete de 250 metros de altura e de uma aparência deslumbrante. A visita guiada é demasiado rápida para o tempo que gostaríamos de passar lá dentro
O tempo escasseia. É necessário alcançar Tanger. Projectamos dormir em Larache. Para chegarmos mais depressa tomamos pela primeira vez uma auto-estrada. Reparamos que não temos dinheiro… e que não temos muito gasóleo. Saímos na primeira saída da auto-estrada, perguntamos onde encontrar uma caixa Multibanco. Respondem-nos que a caixa mais próxima é a 40 Km, precisamente na cidade onde entrámos na auto-estrada. Decidimos seguir pela estrada nacional. A decisão complica-se quando as placas de sinalização aparecem em árabe e quando o mapa que se tem não é tão detalhado como seria necessário. Paramos para perguntar qual a estrada correcta. Os habitantes daquela localidade apenas falam em árabe… E agora?! Talvez a polícia fale francês! Sim, falam francês! Perguntamos a quantos quilómetros estamos de Larache. Perguntam-nos porque não vamos pela auto-estrada. Respondo que não temos dinheiro… Eles sorriem e indicam-me uma caixa Multibanco a poucos passos. Voltamos à auto-estrada agora com o batimento cardíaco mais controlado, com dinheiro e com o depósito de combustível cheio. Uma distracção que deu em aventura. É noite cerrada… e ironicamente estamos próximos de Alcácer Quibir.

domingo

10º Dia

18 / Setembro / 2005
Voltar a Tanger. O porto caótico já não nos assusta. A técnica é não dar atenção a ninguém. Passaportes carimbados esperamos muito tempo pelo barco. Estamos expectantes quanto à passagem na fronteira espanhola…. Será que nos vão revolver a bagagem toda? A viagem é calma e a passagem para Espanha também. Ninguém parece preocupar-se com a nossa viatura. Mudam-se os mapas no colo... Dobra-se o mapa de Marrocos. Desdobra-se o mapa de Espanha.
O regresso a Portugal deixa para trás um veio de saudade. Imagens que secretamente arquivamos nas gavetas da memória. Reminiscências do que ainda à pouco era e já não é. As férias de que já pouco resta. Os cheiros e os sentidos baralhados na memória que ficará. O balanço mais que positivo. Planos que sem querer crescem… A vontade de não partir ainda ou de voltar. Outra viagem que começa mesmo antes de ter começado. E não é sempre assim?